É muito comum, na rede privada e na rede pública, a existência de um ambulatório ou relatório com título:
Risco cirúrgico
Geralmente se trata de uma avaliação pré-operatória de risco cardiológico e, nesses casos, esse título é um problema sério: passa a impressão para pacientes e para cirurgiões que o paciente já está pronto em relação à sua avaliação de risco pré-operatório. Com meus anos de consultas pré-operatórias ambulatoriais e em enfermarias, além de minhas conversas com cirurgiões, posso dizer que esse é um problema sério e que já levou até mesmo a danos a pacientes (por atrasos na cirurgia, por exemplo). Além disso, risco cirúrgico é uma avaliação global que envolve riscos de vias aéreas, risco renal, risco pulmonar, risco cardiovascular, risco hematológico, risco neurológico, etc.
Um título mais preciso e mais adequado seria, por exemplo, "Avaliação cardiovascular pré-operatória". O mais interessante de tudo é que, conforme o capítulo recorrente no tratado Anesthesiology (Longnecker) "Appropriate and effective use of consultants", avaliar o risco de complicações cardiovasculares sequer deveria ser o foco dessas avaliações. É desconfortável para cardiologistas se comprometer a avaliar o risco quando eles não tem conhecimento amplo sobre as cirurgias, momentos cirúrgicos (como compressões de grandes vasos, reperfusão), qual técnica anestésica será usada e com quais parâmetros (peridural anestésica ou analgésica? anestesia geral venosa total ou balanceada? com alfa-2-agonista? etc) e quais as implicações de tudo isso junto.
Então, quem seria o profissional que conhece com profundidade tudo ao mesmo tempo: fisiologia cardiovascular, cirurgias, tempos cirúrgicos, técnicas anestésicas e parâmetros? São justamente os anestesiologistas. A keypoint 4 do capítulo responde isso:
Mas, se são eles quem deveriam avaliar os riscos, qual o papel dos cardiologistas?
É óbvio que nenhum especialista conhece cardiologia tão profundamente quanto um cardiologista. Quando um paciente apresenta sinais na história (exemplo: desmaios), exame físico (exemplo: b3) ou exame complementar (exemplo onda delta no ECG) que não estão acompanhados de diagnóstico cardiovascular que os justifique, ou quando um paciente não está com seu tratamento cardiovascular otimizado (ou existe suspeita de que não esteja), ou quando existe dúvida se o paciente precisa de ajustes em seu tratamento (seja medicamento ou marcapasso), a avaliação adicional por um cardiologista é extremamente valiosa.
Isso é o que resume o keypoint 3 do capítulo da edição de 2018
Tão importante quanto reconhecer isso, é saber fazer a solicitação correta para o cardiologista. Seja específico e justo, não solicite algo que ele não tem obrigação de saber (como risco cirúrgico). Isso é resumido no keypoint 6:
Além disso, não se deve esperar do cardiologista nem do anestesiologista algo que nosso CFM proíbe que é a promessa de resulados. Não entendeu? Sendo mais claro, ao menos teoricamente, somos proibidos de "Liberar paciente para cirurgia". Esse tema é extremamente discutido na bioética e também discutido no mesmo capítulo. Podemos dizer: o risco é x ou y. Aceitar o risco é um papel conjunto do anestesiologista, paciente e cirurgião. Veja um exemplo abaixo de trecho discussão do tema:
Para que tudo isso mude, é preciso criar comunicação entre cirurgiões e anestesiologistas, em serviços de excelência, teoricamente, como no grafo abaixo:
Nosso papel, como anestesiologistas, para mudar toda essa situação, inclui conversar com cirurgiões. Nossa comunicação com cirurgiões não está suficiente. Além disso, quando exigimos avaliações cardiológicas desnecessárias, criamos cultura perigosa e danosa que atrasa cirurgias e encarece o sistema de saúde, entre outros problemas.
Esse problema, que ocorre na medicina pública e privada, tem boa parte da solução em nossas mãos, e não depende de grandes investimentos. Sente com calma e converse com um cirurgião calmamente sobre o tema essa semana.